quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Aracdemia / Exercício de Observação #7

O observo sentado, fumando entre as árvores. O olhar perdido encara a brasa, que esfuma e volta e meia desenha círculos no ar, regendo a música de suas sensações. O frio chegara atrasado na cidade. Tímido, tropeçando em dias de sol. Ele parece não notar, deixando o cachecol cinza jogado em cima da cadeira do café. Sua ponta arrasta no chão, juntando nela as folhas secas que parecem querer, como eu, estar perto de suas pernas. Às vezes ele dá um meio sorriso, como se quisesse conquistar, charmoso, o próprio cigarro. Que absurdo, um cigarro não se conquista! Pegar, acender fumar. Não existe poesia nesses gestos, nada além de carbono, veneno de rato, pólvora. E ainda assim, ele ri com os cantos da boca pro pequeno cilindro aceso, que ri de volta brilhando quente, ainda que morra com essa simpatia. Uma bela cena, iluminada pelo sol das 9h30 da manhã.

Ele tem o maxilar marcado, queixo forte e nariz aquilino. Olhos claros, cabelos loiros com ligeiros toques avermelhados nas têmporas e na barba. Pernas longas, mãos grandes de dedos compridos, braços definidos e costas largas. Pele limpa e sem defeitos. Beleza fácil, que dispensa um corte de cabelo elaborado, barba feita a navalha, roupas bem ajustadas. Ele seria bonito descabelado, com barba, sem barba, de moletom, de terno, uniforme ou nu. Começo a me irritar. São raros os indivíduos que ganham a grande loteria da genética, e a percepção de que não sou nem nunca serei um deles faz subir uma bile peçonhenta que queima minha garganta. Inevitavelmente desperta em mim o conhecido desejo sádico, dissimulado e violento. A vontade de tê-lo entre minhas pernas é sentida com a mesma intensidade da vontade de amarrar, cravar as unhas e ouvir seus gemidos de dor. O desejo de ser olhada com tesão compete com o desejo de ser olhada com medo, e agora quem acende um cigarro sou eu. Sem sorriso, sem poesia. Carbono, veneno de rato, pólvora e compulsão oral.

Ele termina seu flerte com a fumaça e começa a se levantar. Afasto da mente as imagens que clandestinamente molham minha calcinha, e concentro-me na sensação. Quando o desejo aparece, há que ser valorizado, ainda que com ele também surjam as malditas sinfonias de ódio e vergonha de mim mesma. Também deixo passar as automáticas frases de auto depreciação adornadas com a familiar ideação suicida, promessa de solução para todo esse turbilhão desagradável. Foco-me na sensação rara, sagrada e profana que há um bom tempo não me acometia e, aos poucos, o transformo em letra. Escrevo cirurgicamente, transfundindo seu sangue pro meu cérebro em solipsismo e confissões. Deixo os cortes escorrerem negros, não vermelhos, violentando as páginas do caderninho preto. Lentamente sua pele seca na ponta dos meus dedos, virando papel, até fazer um barulho liso e deserto enquanto passa asséptica por minhas mãos. Sangue, suor, porra, saliva. Tudo vira tinta. Os cabelos, linhas de caligrafia, guiam as metáforas ávidas. Sua carne rija eu trituro em um moedor feito de ideias, no qual ele se junta aos ossos de tantos outros. Ao final de tudo, ele será adubo para o próximo rapaz que enrolarei em minha solitária e viúva teia de significados.