segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Projeto leitura proibida: "E os hipopótamos foram cozidos em seus tanques" - William S. Burroughs e Jack Kerouac. (Cia das Letras)

Começo agora um novo projeto pra despejar em vocês, moscas leitoras do meu blog, minha prepotente opinião sobre tenho lido. Chamei de leitura proibida porque não deveria estar me deleitando com literatura em tal momento crítico de minha formação acadêmica. O que faço aqui não é resenha, não é crítica literária, é apenas a minha opinião. Como minha produção textual de contos e afins não tem me agradado muito, acho esta uma boa maneira de me reaproximar da palavra escrita. Normalmente quando termino um livro ou um filme, fico boas horas conversando com alguém a respeito dele, e toda vez me arrependo de não ter registrado as nossas discussões em algum lugar. Dessa vez não conversei com ninguém, mas fica o que achei do livro. Pois bem, usem seus muitos olhos de mosca pra ler o cocô da minha pseudocrítica pseudointelectual.

-----------------------------------------------------------------------------------

Acabei de ler esse livro, dos dois mais aclamados escritores da beat generation. Li de uma sentada, começando às 21h e terminando agora, quase meia noite. A impressão que tive foi a mesma de quando li o On the road, do Kerouac. Leitura rápida e sem muitos contratempos, feita imersa no livro assim como os protagonistas em seus copos de bebida. Descobri que não gosto muito desses autores. O que é narrado se passa entre muita bebida, apartamentos sujos, falta de grana e uma necessidade impressionante de descrever cada refeição e prato de comida feita pelos personagens ao longo do texto (me deu muita fome durante a leitura!). Esta preocupação em enfocar pequenos fatos repetitivos do cotidiano me lembra um pouco a maneira do Bukowski e do Henry Miller de contar suas aventuras. Mas é bem diferente como isto me afeta. Com o velho Buk e o safado do Miller há um eco em minhas entranhas, paro para reler várias páginas dos seus escritos e reflito ao longo da leitura dos textos, o que me faz leitora por mais tempo, pelo menos alguns dias ao invés das várias horas seguidas, famintas, que acontecem quando leio livros deste tipo.

Há uma preocupação no Bukowski e no Miller em narrar aspectos mais intimistas dos personagens, o que leva às viagens quase psicodélicas feitas em Sexus ou às reclamações ranzinzas e profundas que existem em Misto quente e outros do velho, inclusive em sua poesia. O Kerouac e o Burroughs conseguem prender a atenção do leitor por seus personagens cativantes e o que eles fazem, e não pelo que pensam ou sentem. Também sinto cheiro de falsidade quando leio as ações dos personagens. É como se faltasse autenticidade pra falar de miséria, boemia, falta de perspectiva ou putaria quando paro pra pensar nos autores do livro. Isto é meio inevitável quando no próprio posfácio deste fazem questão de investigar quem era quem no livro e na vida real (atitude pra mim, extremamente desnecessária). Ao imaginar Kerouac e Burroughs, um formado na universidade de Columbia e o outro na de Harvard falando da difícil vida de escritor e os comparo ao velho Buk destilando sua bile literária em noites insones e bêbadas, já que trabalhava nos correios nos períodos da manhã, sinto que fica meio pequeno e fraco o romance, e não me impressionam os fatos narrados. Não a mim, também universitária e frequentadora de apartamentos tão sujos quanto os citados no livro. Há sujeira, mas não aquela sujeira escatológica e humana dos livros do Buk ou do Miller. Eu não gostaria de ter esta sensação, que acaba corroborando com a ideia tola de relacionar a vida dos autores às suas obras e personagens, dando uma falsa impressão de causa e efeito, mas há um movimento muito forte, uma aura social que envolve esta geração de autores norte-americanos que me faz não conseguir pensar apenas no texto.

No posfácio, o dedicado James W. Grauerholz traz que em uma das entrevistas com Kerouac a respeito deste livro, o autor fala que ele pertence ao gênero existencialista, e que isso foi um dos motivos de não ser aceito por nenhum editor na época em que foi escrito, já que lá pelos anos 40 tal gênero era lido na França, não nos EUA. Lembrando do que já li do Sartre e da Simone, sou levada a discordar. Narrar acontecimentos "concretos" sem se preocupar muito (arrisco a dizer: nada) com os diálogos internos dos personagens, suas tensões e alívios, sua leitura da realidade e afetação causada por ela não me soa muito existencialista. O nível de profundidade buscado pelos autores deste livro se assemelha muito ao que percebo em vários filmes: rápido, caricato, preocupado com a falta de tempo para desenvolver muito os personagens... Aliás, também notei isso no livro do Fight Club, será que é coisa de autor americano? Pra mim não foi a tendência dos leitores da época ou o fato de o livro se referir a um crime em que seriam facilmente identificadas as pessoas envolvidas que levou à não publicação desta obra, e sim o fato do romance não dizer muito, ser meio gratuito e pouco trabalhado. A odiosa mania de colocar o nome dos autores em uma fonte bem maior, antes do título do próprio livro, feita pelos infelizes responsáveis por elaborar a capa dos livros "lado b" de autores consagrados me faz acreditar mais ainda nisso.

Todavia, não posso deixar de reconhecer o mérito de esse livro ter me feito ignorar todas as minhas obrigações acadêmicas e me fazer terminá-lo em algumas horas de leitura, além de ter me inspirado a abrir esse projeto com ele. As respostas meio automatizadas dos personagens à violência, que sempre recorrem à bebida (e me fazem pensar em como o alcoolismo é um lugar bem fácil de habitar), a sutil apresentação de uma Nova Iorque cheia de trapaças, e negócios escusos, sustentada por um período de incertezas políticas e ideológicas acontecidas no auge da Segunda Guerra Mundial é fascinante. Pensar que as pessoas liam panfletos trotskistas nos bancos doCentral Park dá outras cores à cultura americana (talvez um pouco mais de vermelho), o que muito me agrada. Me faz refletir em como se deu a formação do pensamento político da dita vanguarda/elite intelectual americana de hoje em dia. Também me dá vontade de assistir um filme bem do tipinho do Woody Allen para ter um gosto de todas as neuroses de um habitante da "grande maçã", das quais tanto senti falta durante esse livro.

Talvez eu devesse ter lido esse livro em inglês para ter gostado mais dele (dos poemas do Bukowski eu só gosto em inglês). Desta forma também não teria visto a tradução duvidosa de "cavity" por "cavidade", não por cárie, numa frase sobre um personagem que não era muito fã de higiene bucal palitando os dentes.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Retrato

Mostrou-se um pouco para ele. Despiu roupas, máscaras e o infinito verborrágico que a engatilhava no automático dos dias e sorrisos: lugares comuns para todos, menos ela. Acabavam por ser paradoxais e raros os seus lugares de conforto, a maneira espontânea de flutuar no mundo e cuspir ao vento o disparate da existência. A tensão era sono, o sorriso era rosnado e o ódio uma série de abraços. Em muito eram compostos do feio dia-a-dia do descaso planejado, que crescia em seus dentes uma camada amarela cada vez mais grossa.

Desta vez não sorriu, não citou ninguém. Mostrou um pouco a luta constante e a tensão cruel que permeava seus dias. Acreditava com isso despertar palavras, elaborações repletas de metáforas, o caminho da fuga percorrido tantas vezes. Olhava para baixo, encarando incrédula as próprias mãos. Como podiam pertencer a ela os dedos abrindo o pequeno livro e oferecendo em sacrifício sua frágil totalidade? Imaginava-o tecendo gestos belos e salvadores de um cristo esquecido, maldito e poderoso. Esperava, talvez, ver nele algum eco de si, algo específico que não sabia definir. Uma possível aura, escondida em seus cantos mais escuros e virginais. Várias partes dela desejavam famintas a defloração semi-consentida feita pelo outro.

Ele permaneceu quieto. Olhava para as letras trêmulas que ela desvendava, perpassando seus conceitos e ignorando o caderninho preto. Sem piedade, a via concreta. Talvez seus olhos gritassem, quem sabe fazendo nas íris escuras a transubstanciação proibida, pulsante nas partes esquálidas que ela insistia em esconder. Por um instante, quem sabe, teria a rara chance de se ver por completo nos olhos cansados dele. Mas não conseguiu escapar das próprias mãos. E ao terminar de roer a terceira unha, ela escolheu deixar para trás o mais fiel retrato que poderia ter. Sem ninguém ver, rosnou quieta, virou pro lado e dormiu.