sábado, 26 de março de 2011

~

Se eu tivesse
aquelas pernas
aqueles peitos
os dentes brancos
nenhum defeito
o peito, afoito,
seria cheio
de um próprio eu
tão complacente
sereno, (e)terno.

Mas não abrigo
a carne certa.
Medusa, olho
em meio à pedra,
e sangro
todos os dias
o mesmo peito
calcificado
faminto
e só.


quarta-feira, 2 de março de 2011

Na gaiola / Exercício de observação #6






Estava fumando na janela novamente. Agora, um novo corte de cabelo e uma taça de vinho no parapeito. Há algum tempo não aparecia, o que alimentou em mim uma triste série de indagações: haveria se mudado? Desistira do cigarro e da música madrugante, mergulhara na mundanidade estúpida de quem dorme antes da meia noite? Percebera o sorriso lascivo por trás do meu vidro, talvez o movimento do meu cigarro na escuridão planejada e segura?
Esperei por tanto tempo, eu em minha janela escura, eu e meu binóculo imparcial, observador de nós dois. Eu, atrás das lentes, ela atrás da doce neblina que soltava pela boca. Encarava, firme, as muitas janelas apagadas do prédio à frente.
Eu seria bom um dia, e aposentaria o olhar ávido sobre sua boca, os ombros desnudos, os seios se pronunciando atrevidos por baixo do fino tecido do pijama, mamilos alertas ao primeiro indício de inverno.
Chegaria o tempo em tons pastéis no qual eu trocaria a música e a libido por um silêncio sagrado, interrompido apenas pelo som do vento entre as folhas ou por uma eventual risada pueril entre as árvores de um parque qualquer. Eu seria bom, e usaria o binóculo para fins cristãos e puros, passarinhos, estrelas. Abençoaria com imagens árcades as lentes, numa inocência bucólica de bom selvagem. Talvez, num lapso, vislumbrasse belas pernas desnudas frente ao calor incansável do verão, mas eu seria bom. Não subiria do colo aos lábios, imaginando sua textura, sua temperatura, as lembranças do gole de vinho que acabou de tomar.
Quando herdei o binóculo do meu pai, sabia que ele carregava em si várias camadas de razão. O importante para meu velho era a vida natural, instintiva e automática. A vida não simbólica dos animais. Ele contava histórias a respeito de sua paixão ornitológica sempre que tinha chance, histórias sem sorrisos nem suor, e eu era incapaz de entender qual era o combustível que alimentava as faíscas em seus olhos. As palavras que ele dizia sobre o instrumento que seguro firme nas mãos enquanto o sangue corre para as extremidades de meu corpo não relatavam nada a respeito de curvas num rosto, esmaltes lascados ou sobre a linda dança involuntária da cabeça humana ao som de qualquer tipo de música. Durante todo meu crescimento, escutei longos discursos a respeito de padrões de penas, curvatura de bicos e tipos de cantos, e minha única vontade era de atirar neles com um estilingue. Talvez por isso demorei tanto para retirar os olhos mecânicos de papai de sua bela caixa de couro. Foi esta mulher, brilhando em sua janela de madrugada, quem guiou minhas mãos para o resgate e renascimento da paixão por observar que fervia em meu sangue há gerações.

Agora eu, herege, ateu e maldito, atribuo a estas lentes outros objetivos, muito mais cheios de carne, de suaves penugens úmidas e olhos embaçados, não brilhantes como os pássaros de papai.

Senti sua falta, minha ave. A gaiola emoldurada por vidros não fazia sentido sem você.