segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Escorrendo

É noite. O futuro é fechado e ameaça o hoje, estático. A pressão no peito é sutil. O dia aproxima-se lento, comendo a madrugada, e consome o tempo do agora fingindo ser amanhã. Tudo se confunde num grande baile insone com cheiro e luz de um filme noir qualquer. Entre a névoa, barulhos esparsos no bar. Encaro o copo de vodca com gelo. Ele me olha de volta, refratado em suas gotas, pupilas transparentes de algum monstro lovecraftiano.

Não quero estar aqui, e na garganta que queima alucino outros fluidos. Volta e meia o bartender me olha também, e lá pela quarta ou quinta vez deixo de lado a hipnose das gotas para dar alguma chance àqueles belos olhos. Ele sorri rápido, gatuno, seguro em sua sobriedade. Seca um copo em movimentos sensuais com os dedos longos, alucinando talvez outras texturas. Sorrio de volta, encarando mais que olhos entre os pequenos goles. Ah, o apoio estratégico dos cotovelos num lugar mais alto: aumenta os peitos enquanto o suor frio escorre na nuca. Nunca falha, e é quando percebo a vontade de abalar a segurança quase inata do que é belo.

Ele se aproxima, gingando sem perceber. Largara o copo ali, abandonado com suas próprias gotas. Deixei de ver o rapaz durante alguns instantes, focando a atenção no embate silencioso dos dois copos. O cheiro dele quebrou o transe. Gotas de perfume, talvez. Adorável. Então, a carícia na barba mal-feita. Com um sorriso um pouco largo demais, suficiente apenas para inculcar nele a deliciosa dúvida, caminho trôpega para o orvalho da manhã.




Trilha sonora: