terça-feira, 30 de novembro de 2010

Mais fundo

Um mergulho no escuro opaco, faminto. O cigarro aceso é torre de babel, farol mentiroso erigido apenas para desmoronar línguas de povos mortos, deserto de corpos entre os entulhos do cinzeiro. Do meio da aridez escapa uma tinta negra, incapaz de preencher qualquer coisa, borrão burro patinando conteúdo misturado e confuso. Flashes espaçados, últimas brasas titubeantes, série de significados estilhaçados em cores desbotadas apenas o suficiente para não fazer sentido. Com histórias incompletas pendendo dos lábios, balbucia pueril sons abafados de quem não sabe falar ainda mas já viveu demais.
Os olhos apertados entre os dedos amarelos. As unhas cravam nas pálpebras uma série de runas cuneiformes. Escorrendo entre os espasmos, restos de possibilidades, todas incompletas, cinzas inúteis levadas pela chuva. Entre as palavras quebradas e os pés presos ao chão, noites abafadas e o luto ressentido: uma praia vazia, janelas apagadas, livros mofados.
Desce lentamente, ouvindo a repetição bárbara do não, do impossível imposto antes mesmo de qualquer tentativa. Chora. A cabeça dói e a pele se rompe entre as unhas, enquanto cai indefinidamente num poço de água amarga, sentindo as unhas se desfazendo nas pedras.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Aborto

A rotina odiosa dá gosto amargo a qualquer letra: morre a academia afogada em bile peçonhenta, morre a literatura comida por mofo e morre a escrita rangendo os dentes em silêncio, levando consigo qualquer fagulha de superação. O texto não nasce, sai espasmático e já fedendo a putrefação.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Escorrendo

É noite. O futuro é fechado e ameaça o hoje, estático. A pressão no peito é sutil. O dia aproxima-se lento, comendo a madrugada, e consome o tempo do agora fingindo ser amanhã. Tudo se confunde num grande baile insone com cheiro e luz de um filme noir qualquer. Entre a névoa, barulhos esparsos no bar. Encaro o copo de vodca com gelo. Ele me olha de volta, refratado em suas gotas, pupilas transparentes de algum monstro lovecraftiano.

Não quero estar aqui, e na garganta que queima alucino outros fluidos. Volta e meia o bartender me olha também, e lá pela quarta ou quinta vez deixo de lado a hipnose das gotas para dar alguma chance àqueles belos olhos. Ele sorri rápido, gatuno, seguro em sua sobriedade. Seca um copo em movimentos sensuais com os dedos longos, alucinando talvez outras texturas. Sorrio de volta, encarando mais que olhos entre os pequenos goles. Ah, o apoio estratégico dos cotovelos num lugar mais alto: aumenta os peitos enquanto o suor frio escorre na nuca. Nunca falha, e é quando percebo a vontade de abalar a segurança quase inata do que é belo.

Ele se aproxima, gingando sem perceber. Largara o copo ali, abandonado com suas próprias gotas. Deixei de ver o rapaz durante alguns instantes, focando a atenção no embate silencioso dos dois copos. O cheiro dele quebrou o transe. Gotas de perfume, talvez. Adorável. Então, a carícia na barba mal-feita. Com um sorriso um pouco largo demais, suficiente apenas para inculcar nele a deliciosa dúvida, caminho trôpega para o orvalho da manhã.




Trilha sonora:


quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Exercício de observação #5

Às festas da Psicologia.

Mais uma festa, mais cerveja, aquela sensação pegajosa (muco doce bem no fundo da garganta), pregando tudo na laringe, confundindo as pregas vocais e embaçando convenientemente a vontade proibida de falar, calando assim o desejo irrefreado por gemidos, gritos, mordidas.
Engole novamente, enquanto olha de relance para as costas dele, soberbas, enfrentando toda a hipocrisia do mundo bem na ponta dos ombros retos.
Embalada pelo inconfundível escândalo etílico de um monte de gente junta, se deixa levar pela contemplação ávida em cima de uma pessoa só. Queria não estar tão consciente disso tudo, dos olhares rápidos, sedentos por algum tipo de contato mas incapazes de se manter fixos por mais de alguns minutos em outro olhar. Mas está. Por isso talvez encarasse justo as costas, evitando o que também não conseguia suportar. O outro encaixava-se assim perfeitamente na situação: sem olhos, sem sorriso, só as costas infinitas. Talvez algum pescoço, um cabelo bagunçado roçando na nuca, nada mais.
Na postura corporal do menino-homem esculpia muitas vontades proibidas. Os braços, então, sobem automáticos: a lata à boca, as unhas à boca, o cigarro à boca, numa compulsão oral inconfundível, enquanto confunde, entretanto, sua existência com a desse outro tão fresco e cheio de possibilidades. Enquanto morde a boca de sua lata imaginando outra, a madrugada avança, solta, irreverente, permeada de risadas e flashes. Mas as costas se mantém impassíveis. Por que ele não se move como todo o resto, inferno? O que prega seus pés ao chão, sustentando a lombar enquanto no cérebro todo aquele álcool grita por algum tipo de movimentação? Também estava fixa, esforçando-se ao máximo para esquecer o próprio corpo, a odiosa presença dela pra ela mesma, mergulhando no doce-amargo das fantasias com aquelas costas. Por trás da lata, da moldura dos óculos, por trás das defesas em rímel e lápis de olho, anseia por aquela representação tola do que na verdade é etéreo e infértil. Espera numa fé infantil a exumação momentânea de seus fantasmas, imaginando na ponta dos dedos frios a deliciosa pele libertadora por baixo da blusa verde dele.
Algumas pessoas passam por ela, choques rápidos e o movimento repetitivo de desvio, teimoso, duro, fazendo questão de se manter na mesma faixa maldita de chão que sustenta aquelas costas largas.
Não sabe quanto tempo irá aguentar essa dança congelada, quando a cerveja falará mais alto e a moverá, passo a passo, em direção àquela parte específica do chão. E num olhar dirá tudo, apesar das palavras que possam se intrometer. Olhará por alguns segundos, aspirando forte o possível cheiro de testosterona, lamberá o resto de cerveja dos lábios, e numa calma absurda estampará sua angústia bem no ponto central entre um omoplata e outro. Pedirá desculpa em seguida, voltando pouco depois pra casa com um sorriso masoquista pleno de impossibilidade e segurança. Deixará na blusa verde o queimado do cigarro, a marca da cerveja derramada e uma ligeira lembrança do toque que preparou só pra ele durante todo esse tempo.

"Help me I broke apart my insides, help me I’ve got no soul to sell
Help me the only thing that works for me, help me get away from myself
I want to fuck you like an animal
I want to feel you from the inside
I want to fuck you like an animal
My whole existence is flawed
You get me closer to god
You can have my isolation, you can have the hate that it brings
You can have my absence of faith, you can have my everything
Help me tear down my reason, help me its' your sex I can smell
Help me you make me perfect, help me become somebody else
I want to fuck you like an animal
I want to feel you from the inside
I want to fuck you like an animal
My whole existence is flawed
You get me closer to god"

Closer - Nine Inch Nails

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Hiato

Não escrevia, desenhava ou ouvia música. Há algum tempo não suspirava, e as gargalhadas tinham dentes demais. Cãibra no sorriso, pulmões cheios de concreto, argila correndo nas artérias; Na cidade branca e asséptica só sentia e sentia, afogando-se no turbilhão de mágoa e nostalgia de si mesma, enquanto no carro encostava a mão no vidro frio. Contava os postes e torcia para a súbita guinada do volante. A cidade vazia quase gritava por alguma explosão, talvez com rastros de sangue no asfalto: sumiriam rápido, engolidos pelo ar seco por qualquer indício humano em seus horizontes infinitos e estéreis.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Na Balada

Eram onze e cinquenta e três da noite quando entrou no bar. O lugar já envolto em vapores: respiração, álcool, cigarros. Chegava o momento da noite no qual as pessoas pareciam começar a despontar de seus casulos de solidão. O álcool começava a fazer efeito, e os grupos fechados de amigos apresentavam uma sombra de abertura para os outros grupos solitários. E ela entrando ali, com sua sobriedade, seus cabelos ainda cheirando a condicionador. Entrou destemida, soberba, como se procurasse alguém. Escondia no rímel e delineador o olhar assustado de quem não tem com quem contar.

Por que aquele bar? Jukebox, pista de dança, luz negra, sofás vermelhos, pessoas com calças apertadas e poucos sorrisos. Seria por isso? Seria apenas essa materialidade que deu o sentido à madrugada de quinta-feira? No fundo sabia que não. Do centro de sua garganta tentavam subir as cruas verdades sobre expectativas e idealizações. Comprou uma cerveja para botar as verdades em seu lugar (ao lado da gastrite eterna), percebendo assim os olhares desconfiados se afastarem dela, feito cães. Claro, eles em uma rápida e eficaz manobra lógica pensaram todos juntos como num coral: 'ela está a espera de alguém'. Não deixava de ser verdade, em algum aspecto. Ela esperava, acariciando o pescoço long neck, algum daqueles estranhos sair por um instante de toda a encenação noturna possibilitando assim algum tipo de troca ali no balcão do bar.

Olhava a garrafa cerveja havia quinze minutos. Em algum lugar da festa, várias vozes cantavam desafinadamente uma música qualquer do AC/DC. E a cerveja ali, suando, parindo todo aquele tédio em gotas transparentes. Nunca se deu bem em festas, naquelas cheias de gente desconhecida desinteressante e desinteressada em conhecer qualquer um que não responda às suas expectativas nos primeiros 10 segundos de contato...Mas que merda, a quem queria enganar? Esperava também, no balcão grudento esperava, na garrafa úmida e no ar carregado esperava, esperava em alguém o ar seco e deserto, talvez amargo e cativante, esperava com a mesma intensidade daquela gente toda, acompanhando com os saltos o ritmo da música, numa mímica mal feita dos gestos ensaiados daqueles grupos seriados sorridentes e sociáveis.

E já não havia mais pedaços de unha comestíveis, e os cigarros já haviam salpicado os dedos, não mais dando conta de sua nobre função de ratificar a solidão; perdiam o sentido num lugar planejado para, teoricamente, interagirmos. E a maldita música agora com solos e gestos frenéticos dos grupos lutando para esquecer uns aos outros, a mesma música repetida pela terceira vez. Quem cuidava daquela porra de jukebox? Todos cantavam desesperados, espantando com as mãos o silêncio que os faria refletir sobre o nada em que flutuavam. E ela ali, contando as gotas sumindo no guardanapo, ponderando como iria embora e quanto tempo mais duraria aquilo tudo.

-Oi tudo bom?
-Oi.
-Massa a música né?
-É, talvez.
-Você tá sozinha?
-Não, tô esperando alguém.
-Ah tá. Posso te pagar uma cerveja?
-A minha tá na metade ainda.
-Ah.
-Me dá um cigarro?
-Pô, nem fumo...
-Ah.
-Acho que vou ali botar alguma coisa na Jukebox.
-Vai lá.
-Tchau.

Ele voltou pro grupo, gingando, cheirando a chiclete de frutas. Pegou uma moeda e botou pra tocar AC/DC.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

...Oi?

Você não vai escrever nada. Você não vai conseguir traduzir em palavras o abraço, os barulhos, o cheiro confuso das lembranças que achou terem morrido. Tentará escrever qualquer coisa que dissipe um pouco essa fome, o fôlego infinito por um momento que deveria ter eco em muitos mais, mas que precisa bastar-se. Você não vai conseguir, mas terá que escrever, na mesma madrugada em que tudo aconteceu, com a garganta ardida pela falta de cigarros, o peito vazio e feliz pelo extrair gradual das mágoas. Elas sairão, deixando aparecer e encherem-se de água salgada as pegadas fundas de saudade reprimida, improváveis tulipas vermelhas bem no meio do cerrado. E as possibilidades, em dúvida, perguntarão tímidas entre si o que aconteceu hoje, o que as reencarnou com um gesto. Elas não terão resposta, e você escreverá para tentar prever inutilmente em que elas desdobrarão, escreverá para tentar traçar caminhos virtuais , racionalizando o que não se pode racionalizar, e escreverá, sobretudo, para deslizar por si e conseguir visualizar um pouco de tudo o que aconteceu, olhando de esguelha para um projeto que começa a renascer.

domingo, 4 de abril de 2010

blá.

Novamente a fuga no meio delas, o velho e gasto tema da escrita, a música abençoando metáforas ruins. Acendeu outro cigarro, esmagando sem perceber o filtro entre os dentes; rangia os dentes há muito tempo, mas nunca como nas últimas semanas. O maxilar doía, e abrir a boca era um esforço enorme que não valia a pena. Deixara há algum tempo as palavras de lado, agonizantes e tristes como os sonhos no maldito verão que a sufocava todas as noites. As suas palavras, os pequenos fôlegos, sorrisos internos de dentes tortos, os pedaços de si que conseguia achar um pouco menos horrorosos que todo o resto. As abandonou assim, pretensiosa, querendo encarar a "realidade", no máximo auxiliada por bons autores canônicos. Não precisava de tudo aquilo, da gestação maldita, do isolamento e dos infinitos cigarros. Não precisava escrever, ofício inútil e sem perspectiva, não precisava fingir que sabia sua língua nativa, tudo o que precisava era ler, espreguiçar-se apática sobre um livro qualquer, encarnar escritores já reconhecidos, comer compulsivamente as palavras de outros sem nunca preocupar-se com as suas próprias. Não precisava abrir a boca e sentir a dor do maxilar ressonando com as outras dores, não precisava de palavras para além do utilitarismo preguiçoso do dia a dia. Como se ele bastasse, como se café maquiagem lenços detergente lençóis limpos pão de forma cigarros condicionador pasta de dente vestidos computador lugares-comuns elevador passagem de ônibus guarda chuva bibelôs aspirador de pó cumprimentos cortinas secador de cabelo pudessem a liberar da maldita gana, do suspiro interminável no peito , do desejo por elas, deusas e rainhas, construtoras de mundos mais coloridos, pulsantes. Queria voltar para as palavras para não ter que lidar com o mormaço, o nada corrosivo e áspero de um mundo sem poesia, sem arrebatamentos, sem sexo, um mundo acadêmico com cheiro de marfim e lustra móveis.