quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Em suspenso


Entre os ganchos na pele podia sentir escorrendo macio o sangue pelas costas. Enquanto estava ali pendurada, pensava no que a levara até ali. No que juntou-se lentamente, crescendo, afiando-se aos poucos, tornando o metal brilhante cada vez mais atraente, o seu toque frio numa carícia, a dor pulsante em cócega. Se perguntava quanto tempo duraria, o quanto poderia concentrar o peso num gancho só, a apenas um átimo de romper tecidos, espalhando sangue e pedacinhos de gordura pra todo lado. Lembrou de suas primeiras tentativas, quando ainda não sabia que a dor do rompimento era pouco maior que a da perfuração em si, o que resultou numa grande marca no pulso. Sentia as ondas de calor, principalmente nas escápulas, com os ganchos perto dos ossos. Puxava a corda silenciosamente, a tensão na pele aumentando aos poucos. O momento crucial e tão assustador toda vez : a possibilidade de voar ou de cair sangrando num universo de dor surda. Às muitas sensações se misturavam pensamentos perdidos que ela só conseguia alcançar a pelo menos quinze centímetros do chão. O cabelo roçava levemente na nuca, o suor frio escorrendo em seus ouvidos como lágrimas ao contrário. Era hora de começar a se mover. As pontas dos dedos primeiro, tímidas, seguidas dos pulsos girando devagar, restituindo a cor às mãos brancas salpicadas de vermelho. Não queria encontrar deus, ou o vazio, não queria provar a ela mesma que era possível, não queria os jorros de endorfina, só queria por alguns momentos deixar aquele piso odioso e comum.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Exercício de Observação #4

Para Tiago.

Encaro seu perfil por cima do beliche. Você morde o lábio inferior enquanto devora o livro, as últimas páginas convulsivas clamando o fim da história. Os olhos continuam metódicos, o pulso segurando o exemplar firme, a respiração presa nas últimas palavras. Eu já li esse livro, mas há tanto tempo que apenas a trama principal e algumas cenas ainda permanecem, formando a conhecida fotografia velha que é tanto do que já li. Não consegui identificar o desfecho no seu cenho ligeiramente franzido, na mão segurando a testa, quase um aceno involuntário a todos os personagens. Falhei e pergunto-me quanto daquelas palavras ainda me pertencem. Você não se satisfez, e relê novamente o último capítulo. Prolongando o gozo, talvez? Ou adiando o luto pelos personagens, pelo lento esquecimento das letras?
Agora a mão livre vai à boca às costas, aos cabelos, aceleram-se as pernas inquietas. O aceno vira orgasmo contido, vontade de explodir feliz com as novas informações e os dedos roídos. Seus olhos e boca encerram toda a sensualidade do mundo, no derradeiro suspiro de Um Jogador. Eu não sou nada além da observadora presença fantasmagórica, e percebo na sua postura corporal o envolvimento que nunca conseguirei de você. Eu corpo, versus livro, ideia. Eu de calcinha e camiseta velha contra toda a Rússia gelada de Dostoiévski. Era um caso pra despeito, ciúme infantil talvez. Sorrio lentamente enquanto digito, a minha deficiência frente às páginas duplamente cômica por remeter a outros livros. Terei sempre este mediador físico a me forçar a existir limitada, e seus olhos em mim jamais mergulharão tanto quanto nestas linhas negras. Quais serão as instâncias, entretanto, que um corpo tatua em outro?