sexta-feira, 2 de outubro de 2009

O soco

"Eu não aguento mais", repetia baixinho, os cabelos desenhando anéis nos dedos cravados no couro cabeludo. Aquela apatia estúpida, o consumir em vão de si. O fogo tornado brasa por falta de oxigênio. Era difícil suportar o peso dos silêncios contínuos perante todo o escarcéu vomitado em cima dele e engolido de volta sucessivamente. A raiva volteava no estômago, correndo para as pernas irrequietas, para a ponta dos dedos se afundando entre os fios ansiosos por expurgar uma a uma as idéias que apenas se encrustravam mais fundo a cada grito. Quis arrancar os caracóis todos, tirando um escalpo legitimador de mais um momento destinado a afundar no esquecimento morno até a próxima briga. Iria estampar nas paredes do quarto pequeno aquela angústia, seja com o cuspe dos berros ou com o sangue imaginário pingando da cabeça em carne viva. Mas ele mantinha o silêncio asséptico, branco, carregado das incertezas e fantasmas pálidos mais mortos que fantasmas conseguem ser. Os dela não eram assim, vinham num rompante, carregados de emoções e ódios eternos, pulsantes e horríveis. Culminavam sempre em sonhos com gritos e metáforas indigestas. As últimas eram uma mistura odiosa de macarrão velho, carne queimada e detergente amarelo. Mas os dele nem rosto tinham. Como desejava desenterrar daqueles lábios um grito visceral apenas. Um grito libertador. Silêncio. As unhas cravadas na cabeça afundando mais e silêncio. Pernas e unhas e mãos e fios e ódio. O único som compartilhado pelos dois saiu do punho explorando cartilagens e ossos normalmente desconhecidos. Até hoje ele tem o nariz levemente torto pra direita.