sexta-feira, 26 de junho de 2009

Exercício de Observação #3

A mais bonita que já vi. Séria,macia, redonda e tão efêmera nesse mundo injusto. Ela, que ressignificou o ônibus, o cigarro do pedestre no frio, as maledicências da mãe que batia em sua criança pela calçada, o roçar leve dos cabelos em outra qualquer: não eram os seus, trançados apressadamente no frio da manhã; Os seus recuavam frente a ela, tão tímidos quanto meus olhos espiando pelo reflexo da janela. O mundo ao meu redor moldou-se ao redor desse novo referencial, despertando em banalidades tentações. Quis lamber as pichações dos muros sujos, beber água do mar impróprio para banho, arrancar com os dentes pedaços gordos das poltronas enquanto ria de volta para os paralelepípedos, sorrisos eternos das ruas. Roí loucamente minhas unhas, olhando seus dedos finos, sem coragem para encará-la por mais de dois segundos.
Mais uma parada eu voaria em você, devorando essas carnes num frenesi passional. Mais uma parada comporia a guinada brusca dos fatos, e eu teria acontecimentos menos desnecessários para adicionar aqui além do riso do guarda na escola municipal dobrando tranquilo a bandeira flácida do Brasil, além dos "eu te amos" escritos em caligrafias distintas com setas vetorialmente opostas à nossa frente. Mais duas paradas e esse texto teria menos frustração libidinosa do que acho plausível expor. Apenas mais algum tempo e sua licença sorridente ao me dar passagem seria um olhar de terror ao sentir minha saliva. Alguns momentos a mais e seus olhos cansados poderiam chegar à altura de sua boca, a mais bonita que já vi.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Cinzas

Foi uma questão de meses. Em meses se repetiu, incessantemente, a frenética queima de fogos toda vez que estiveram juntos. Não havia pudores, papas na língua: em pouco tempo gastaram o que muitos levam vidas pra conseguir. E consumiram um ao outro vorazmente apesar do mundo. Eram amigos, desde aquela primeira troca galopante de palavras. Eram amigos ávidos, nervosos por revelações completas, por desnudar idéias e conceitos há muito escondidos. Ela raramente o fazia, mostrar-se assim tão prontamente. Ele prezava a experiência por si só, ignorando as consequências daquilo tudo. Foram ousados e pretensiosos demais, querendo com dois pares de braços abraçar toda existência. Mas tudo foi vivo por este período convulsivo, e brilhou barato por trás de camadas de pó e fumaça de cigarro ruim. E os dois desfrutaram daquela decadência nua como se não houvesse amanhã. Como se o lixo nas ruas fosse alguma coisa além de lixo. E durante algum tempo, a realidade não fazia cobranças. Por algum tempo foi-lhes permitido viver assim, sinceros. Os seus fantasmas e medos continuavam a existir, mas com eles se moldava tranquilamente estátuas feitas apenas para desmoronar. A insegurança era motivo de riso e indagações, uma desculpa pra ir mais fundo, pra machucar mais e ver o sangue poético escorrer. Equilibraram-se, bêbados da noite, em fios de telefone, nas bordas de camas alheias. E riram alto e desafiadores disso tudo, de todas as necessidades estúpidas de toda aquela gente amorfa. Gargalharam amargos, colocando-se de fora daquilo tudo, do oitudobemtudobemevocê, dos apertos de mão, dos abraços vazios. Riram e ergueram suas taças, brindando à caminhada cega das massas até o precipício. Eles caíram juntos, de olhos bem abertos.

"I taste your sorrow and you taste my pain
Drawn to each other for every stain
Licking the layers of soot from your skin
Your tears work my crust to let yourself in

Touching you harder
Touching you harder now

As we walk through the ashes
I whisper your name
A taste of pain to cling to
As we walk through the ashes
You whisper my name
Who's the one with the sickest mind...
now?"

Pain of Salvation - Ashes