sábado, 10 de janeiro de 2009

Sem Título

Ele nunca foi bom com palavras. Elas sempre fugiram nos momentos mais importantes. Sempre riam dos seus olhos confusos, dizendo olá só quando não interessava. Ele as odiou, desde o dia de sua primeira rasteira, perante os olhos marejados dela, uma ela entre tantas outras, todas com os mesmos olhos. E tudo que insistentemente digitava parecia não diminuir o branco da tela nunca, ou pior, parecia engolido nos pensamentos comuns e insossos das pessoas desinteressantes. Quis tanto desistir delas, as limitar ao vocabulário pobre dos jornais, espremer de sua cabeça qualquer suco, deixando pra trás apenas engrenagens soltas e secas, utilitários nunca utilizados, como o velho processador da cozinha, como o estúpido limpador de pêlos, encostado desde o dia da morte do gato. Ele ansiava pela estática dos domingos mortos, preenchidos por barulhos que não viram onomatopéias, por palavras que não formam idéias.

Mas elas surgiam, nas madrugadas, nas tardes eternas. Surgiam no meio de seu trabalho, surgiam enquanto cortava o bife frio do bar da esquina. Sussurravam em seus ouvidos durante o sexo, no exato momento em que fechava os olhos achando que o momento era só seu. Surgiam, intrometidas, espalhando em seu hálito vogais malditas; embaçavam o espelho, criando o reflexo que poderia ser qualquer coisa. E obrigavam seus dedos a se mexer, no exato momento em que o conforto parecia finalmente ser parte dele. E ele escrevia, sentindo câimbras odiosas, nos dedos e nos pulmões, desacostumados com suspiros. Escrevia selando não libertação ou catarse, escrevia escravo, bilioso e amargo como seu gato costumava ser.

Ela esperava. Esperava para ver entre tanto cinza, a cor de sangue da inspiração dele. Esperava, entre um cigarro e outro, o uso desengonçado das metáforas tão belas, das vírgulas ansiosas, ofegantes. Ela, cuja gata obesa ainda vivia. Tinha raiva, é claro. Raiva de ser tão escrava das palavras quanto ele. Raiva por acreditar, sempre: e esperar, de olhos limpos. E elas chegavam, hora ou outra. Chegavam bonitas e estúpidas, nos momentos mais inconvenientes, claro. Ávida, as percorria sem qualquer senso de decência, devorando-as. As mastigava rápida, estúpida e brutalmente, engolindo frenética, gulosa, cada uma de suas frases. As palavras já não mais risonhas tentavam escapar a cada piscadela, mas ela as relia, em vômitos mastigados e engolidos novamente. Ela lia, não com alegria ou elegância. Lia com fome.