quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Exercício de Observação #2

O ônibus entra no túnel de madrugada. As luzes amarelas ferem meus olhos acostumados ao escuro da viagem, e o vejo ali, exposto, envolto numa aura estranhamente uterina. Tudo é dourado, macio, tudo menos os cabelos negros, famintos, sugando em ondas o ponto de luz branca emitido pelo aparelho caro de mp3.
Nas mãos brancas, dedos nervosos, impacientes. Dedos de unhas roídas. Daqui posso ler o que escuta; movimentos quase imperceptíveis acompanham a música : Sour Times, Portishead. As coisas derretem ao redor de suas mãos, na luz leitosa do aparelho, e o sorriso no escuro -dirigido a quem?- também reflete algumas faíscas.
Fim do túnel. A luz branca contrasta com o escuro novamente, perdendo a característica confortável de antes, refletindo em sua pele de forma dura, fria, o transformando de possibilidade quente em mármore frio, morto. Nada mais faz sentido agora : nem a ressaca de suspiro em meu peito, nem o balançar nauseante do ônibus, tampouco o balbuciar dos seus lábios rosados ao som de outra música, outro mundo, outra qualquer. Pára de mexer no aparelho e o ponto de luz some. Por um instante somos um só: eu, ele, poltronas, asfalto. Minhas pupilas novamente se adaptam, silhuetando tudo em azul escuro e cinza. Mais propício, impossível.

"Covered by the blind belief,
That fantasies of sinfull screams,
Bear the facts or soon will die,
End the vows no need to lie
Enjoy

Take a ride, take a shot now,
cos nobody loves me, it's true,
Not like you do"

Portishead - Sour Times