segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Exercício de Observação #1

Então saiu caminhando por aí. As vozes ainda ecoavam na parte de trás da cabeça, lá onde ecos indistinguem-se de restos bem reais de vivências. Gotas grossas caíam com força, e chovia de baixo pra cima, já que tudo eram poças quebradas pelos gordos pingos. Ecoavam as palavras, retumbavam os silêncios. Saiu a caminhar assim, plácida. Os nadas entre uma idéia e outra já tinham definido tudo aquilo há muito tempo atrás. Há muito sabia do resultado, há muito construíra aquela caminhada quase serena pelas calçadas sujas, incomodadas pela súbita exposição diante de tanta água, tão calma por milésimos antes do cair espalhafatoso das granadas do céu. Pareciam cusparadas.
Já sabia as palavras que iria dizer, mecânicas; já tinha certeza das que ele responderia. Só não sabia que as calçadas gritariam angustiadas muito mais do que ela, às vinte horas e cinco minutos da quarta-feira.
Os momentos anteriores eram muito mais reais agora : o roer dos cantos das unhas, muitos deles já ensanguentados; os vários litros de café, a pequena pilha de guimbas de cigarro. Deve ter visto um ou dois conhecidos no popular bar da faculdade, e as palavras ditas eram agora tão enevoadas quanto a fumaça que soltava incessantemente pelas ventas. Não percebera várias coisas, remoendo o discurso já pronto. Seus conhecidos, os sapatos sujos de lama, ou a mim, observando-a.
Não acompanhei a conversa, ou os silêncios. Não vi o tremor das suas mãos, não vi o outro maço de cigarros (comprados no mesmo bar) sendo consumidos vorazmente. Eu já caminhava pra casa, quando a notei, na calçada oposta. E é claro que identifiquei o andar plácido, claro que vi os grossos pingos molhando as meias brancas. Claro que vi. Vi e uni a mim os gritos espelhados das calçadas. Claro que quis chutar as poças, correr até ela, claro que quis lavar suas mãos cheirando a nicotina na chuva inconveniente, abraçar sua angústia, sacudir a maldita placidez das almas que morrem para longe de seus olhos molhados.

Tudo que fiz foi oferecer uma carona no guarda-chuva. Ela não aceitou.


"Mouthful of cavities
Your soul's a bowl of jokes
And everyday you remind me
How I'm desperately in need
(...)
I write a letter to a friend of mine
I tell him how much I used to love watch him smile

See I haven't seen him smile in a little while

Haven't seen him smile in a little while"

Mouthful of Cavities - Blind Melon

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Cotidiano.

Engulo a seco os pedaços mal mastigados de pão de queijo. A tia maternal da cantina não demonstrou muito interesse em mim. Imagino quantas filhas ela já não tem, e quantas, em tempos de cabelos mais negros, desejou ter. O clima úmido dos arredores deste lugar se mistura a esparsas baforadas do cigarro caro, transformando-se numa fumaça viscosa que lambe meus dentes. Estou cercada de cachorros marrons, vira-latinhas amáveis e famintos; infelizmente não comem cinzas de cigarro como eu. Escuto partes de conversas animadas e me pergunto como, neste ar molhado e frio , podem florescer ânimos tão coloridos. "Itália e Portugal, claro!" como não percebi antes? Os ânimos deles são mais adaptáveis que o meu, instável como o clima desta ilha frágil. Assim que me acostumar à dor nos ossos , consonante com as fungadas de nariz, surgirá um dia quente, talvez seco: então reclamarei, também em metáforas, das axilas suadas e de quem consegue se refrescar conversando sobre outros países de clima mais ameno.